domingo, 18 de setembro de 2011

Aos mestres de bandas



por Bembem Dantas*

O maestro Peres em tom de desabafo, escreveu sobre sua situação pessoal, que sem dúvida reflete e revela uma realidade obscura e injusta pela qual historicamente se passa com os mestres de banda desse país: "Poucos sabem que os regentes de bandas que trabalham para prefeituras são contratados como prestadores de serviço. Não têm direito à férias, 13º salário, Fundo de Garantia, Pis ou Pasep. Trabalhei nesse sistema por mais de 30 anos, e estou para aposentar-me este ano por idade (com salário mínimo). Uma das prefeituras descontou o valor do INSS do meu salário durante quase 20 anos, porém não recolheu àquele órgão.Não adiantou reclamar. Agora encontro-me desempregado e não adianta chorar. Ninguém nota" - (Maestro Peres).

Nossa solidariedade ao colega Peres. Realmente essa é a situação da maioria dos mestres de bandas. Somos e passamos desapercebidos, invisíveis, enquanto descobrimos e formamos para música, bem mais que a metade dos músicos de sopro e percussão do Brasil.

Conheço como o maestro Peres, inúmeros colegas nesse dilema, alguns começando, outros no auge das suas atividades, outros tentando se aposentar por idade ou invalidez, enquanto muitos já se foram, ressentidos, humilhados em detrimento do inestimável serviço prestado a cultura musical dessa nação.

Aqui acolá alguém se lembra de homenageá-los com uma placa ou um título de cidadania. Em última gestão, depois de morto, dar-se o nome de uma sala, ou de um projeto, chegando ao ápice de renomear a banda a qual dedicou a vida, com o seu nome. Isso é bonito, louvável, mas inclusive são poucos que guardam "tamanhos merecimentos". Não deixam bens materiais, geralmente uma pensão de salário mínimo, uma casa singela. No entanto sempre fica como referencia um histórico de reserva moral e ética.

As prefeituras, que empregam quase a totalidade desses profissionais na sua grande maioria, os contratam como prestadores de serviço com salários baixíssimos, sendo raras as que lembram de colocar uma vaga nos editais de concursos depois de muitas consultas jurídicas, já que de banda não existe. Conheço aqui no RN, prefeituras que deixam até mesmo de contratá-los durante os meses de janeiro, fevereiro março e abril, já que nesse período "não existe atividades para banda", muito embora sempre apareça um evento de última hora, do qual a banda não pode ficar ausente. Também não conheço mestre que pare seu trabalho em função deste descaso. Todos sabemos que no início de cada ano, precisamos estruturar nossas bandas. Iniciamos novas turmas para o curso de teoria e musicalização, preparamos orquestras para carnaval, lançamos novos aprendizes em instrumentos, já que o fluxo de alunos é comum no nosso trabalho. Precisamos manter a banda sempre pronta, para não pagarmos as conseqüências de sermos divulgados como irresponsáveis e incompetentes. Atualmente num período de dois anos, é normal a renovação dos músicos de uma banda em pelo menos 30%. Mas mesmo assim, trabalhamos a perceber um dos mais baixos salários e sem direitos trabalhistas, mesmo sendo reconhecido pela sociedade como profissionais importantes, que a cerca de dois séculos atuam produzindo arte, cultura e contribuindo com a afirmação de nossa identidade.

Isso são detalhes diante do quadro. O famoso Tonheca Dantas, compositor potiguar, autor de várias obras entre elas a célebre valsa "Royal Cinema", a marcha "Republicana" e a fantasia "Melodia do Bosque", não queria filhos seus envolvidos com música, por considerar, essa "a arte da ingratidão". Tenho pessoalmente sido testemunha de confidencias e desabafos de colegas, que dizem: " não quero uma vida dessas para meus filhos".

Ao refletirmos sobre essa situação, podemos visualizarmos o quanto somos desorganizados quanto classe. Os mestres de banda de música, são na sua grande maioria, trabalhadores incansáveis, dedicados as suas agremiações, preocupados com o futuro e o passado da cultura musical Mestre brasileira e formadores de opinião. Ensinam, compõem, arranjam, ensaiam, se apresentam,administram geralmente sozinhos as suas escolas de música e mesmo assim, necessitam de pelo menos outro meio de sobrevivência. São muitos os que trabalham em 3 bandas e mesmo assim ainda vivem com dificuldades. Produzem demasiadamente por toda vida!

Geralmente autodidatas, além dos conhecimentos musicais e didáticos, os mestres de banda se destacam também na sua imensa maioria, por serem detentores de qualidades morais irrefutáveis, integridade, carisma e amor pela musica. Disciplinados e regra pela necessidade de "não deixar a banda cair" e por muitas vezes a pedido do seu velho mestre. Ensina e forma gerações de meninos e meninas, se utilizando de métodos e didáticas humanistas, desenvolvida no dia a dia de seu ofício.Preocupa-se não somente com a ascendência musical dos seus alunos, mas, e por muitas vezes com maior contundência, passa a assumir a preocupação com o futuro deles, tendo-os como filhos. Muitos, dizem: O mestre foi meu segundo pai ou mesmo o pai que não tive, devo minha vida a ele. Outros os tem com mais respeito que aos seus pais biológicos.

Essa verdade soma-se ao desprezo por parte das autoridades em continuarem desconhecendo a importância desse arquétipo de herói popular, que desde os tempos do império contribui de forma positiva para o engrandecimento desta nação musical.

Creio que o momento é propício para começarmos a colocar esse tema em discussão. As bandas, cerca de cinco mil no Brasil, passa por um momento especial de reconhecimento e afirmação como instituição cultural e social. Produtoras de arte e cidadania, enquanto seus fazedores continuam a repetição da história, sem o direito de ser reconhecido como classe social por simplesmente não existir perante as leis trabalhistas, quando profissões relativamente novas, como motoboys, agentes de saúde, operador de telemareting, etc, já existem perante o ministério do disciplinadores, começam moços, via de trabalho.

É factível que encontraremos apoio político para nosso pleito. Não temos dúvida que a sociedade também se pronunciará positivamente ao revelarmos nossa situação.

O maestro Peres diz que não "adianta chorar"... Pois chegou a hora... Realmente não precisamos chorar, mas sim e urgente, nos organizarmos, promovermos encontros, deslocarmos um movimento, mostrar a nossa cara. Será que tantos ex alunos, muitos deles famosos, não se irmanariam conosco? Será que a sociedade não nos apoiaria?

Visitei ainda nos anos 90, no seu pequeno pedaço de terra no sopé da serra de Santana, o saudoso e espirituoso mestre Marciano Ribeiro de Florania - RN. Com 88 anos e 75 dedicados a banda centenária daquele município. Eu, a poucos anos a frente da banda de Cruzeta. Ele trabalhava de ferreiro, na sua tenda artesanal.Quase cego, irreverente depois de oferecer uma talagada de cana com manga verde como tira gosto, com um sorriso me disse: "Você ainda vende carne nas feiras?"

- Vendo, respondi, mas vou deixar pra me dedicar só a banda...

- E vai viver de quê, quando tiver com 50 anos, respondeu e mudou de conversa (eu tinha 25)...

Nunca esqueci aquele ensinamento. Assumi um compromisso silencioso o qual revelo agora, em contribuir para a mudança daquela realidade. Hoje tenho muitos alunos que se tornaram mestre, procurei incentivar para que todos tivessem formação acadêmica, travamos lutas para que as bandas pudessem ter maior visibilidade no RN, avançamos significativamente na parte técnica, conseguimos ocupar espaços de maior destaque. Mas os mestres continuam quase na mesma situação sintetizada pelo sábio e vivido mestre Marciano Ribeiro, que agora tem o seu nome imortalizado na banda daquele município, na qual atuou por cerca de sete décadas.

O desabafo do colega Peres, que afinal eu ainda não conheço, traz à tona as palavras de Marciano, reaviva meu sentimento de justiça e alimenta meu compromisso e sonho, de que um dia essa realidade mude definitivamente. Acredito que esse é o pensamento de todos e que poderíamos começar a nos utilizarmos das vantagens da comunicação atual, para nos fortalecermos e apontar a partir da nossa união e organização sensibilizarmos os fazedores de lei deste país, que historicamente tem essa dívida para com seus mestres de bandas e assim possamos incentivar os nossos filhos a dar continuidade a essa profissão que ainda não existe de direito, mas que está escrita nos anais do imaginário real e imaterial do nosso povo, de maneira sublime e necessária ao desenvolvimento cultural, social , musical e artístico desta nação.

É questão de justiça, meu caro Peres! Quem estará conosco?

Saudações a todos!!!

* Humberto Dantas é maestro da banda Filarmônica 24 de Outubro - Cruzeta RN e membro fundador da Unibam-RN (União das Bandas de Musica do RN)

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