sexta-feira, 8 de julho de 2011

Filarmônica na Encruzilhada

Filarmônica na encruzilhada

Publicação: 06 de Julho de 2011 às 00:00

Yuno Silva
repórter

"A música oferece oportunidades, opções de vida, pois a tendência de quem mora na zona rural de pequenas cidades do sertão nordestino é trabalhar na agricultura para subsistência ou ir tentar o futuro em São Paulo. Pelo menos foi assim na minha época", afirma Humberto Carlos Dantas, maestro da Banda Filarmônica 24 de Outubro. Mais conhecido como Maestro Bembem da Banda de Cruzeta, município do Seridó potiguar, distante 220 km da capital, Dantas engrossa o coro dos 'órfãos' de políticas públicas para o segmento cultural, e sabe mais que ninguém que desistir da música significa frustrar o futuro de toda uma nova geração de instrumentistas. "Não somos apenas uma banda, temos todo um projeto educacional por trás, e estamos com dificuldade", adianta. Reconhecida internacionalmente como celeiro de talentos, merecedora de elogios do ex-presidente Lula, tida pelo Ministério da Cultura como exemplo a ser seguido, contemplada pelo Programa BNB Cultural e transformada em Ponto de Cultura há três anos, a Banda de Cruzeta está prestes a completar 25 anos de atividades no próximo mês de outubro, mas o Maestro ainda não sabe como viabilizar todo o projeto formatado para celebrar a data. "Não recebemos nenhum apoio por parte do poder público, nem do Estado nem do município, e só mantemos a Banda e a escola funcionando por causa da dedicação de quem acredita na música como elemento capaz de promover inclusão e transformação social. É uma situação inexplicável", constata.
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Longe de ser derrotista, o batalhador Bembem Dantas chega a Natal hoje para tentar garantir algum apoio financeiro da Fundação José Augusto. "Quero ver se consigo mostrar nossa proposta para a professora Isaura Rosado (secretária Extraordinária de Cultura)", disse o maestro, que também pretende buscar patrocínio junto a iniciativa privada. "Também mandei projeto para Fábio Lima do MinC/Nordeste, mas ainda não obtive resposta".

Segundo Bembem, a intenção é festejar o quarto de século da Banda com a realização do primeiro Festival de Música de Cruzeta entre 12 e 17 de outubro, onde estão previstas apresentações musicais, encontros de bandas filarmônicas, lançamento de CDs, oficinas, seminários de formação técnica, exposições fotográficas e exibição de vídeos. "O projeto envolve diretamente cerca de 1 mil pessoas e está orçado em R$ 40 mil. Já temos 50% desse valor, garantido pela Prêmio BNB, especificamente para gravar CD da Banda e viabilizar os seminários", informa. Toda a programação é gratuita e em praça pública. Durante o Festival, Bembem irá lançar a proposta de construção de um teatro em Cruzeta.

Tudo seria diferente se tivesse recebido os recursos por ser Ponto de Cultura: "Fomos contemplados em 2008 e até agora só recebemos uma parcela. A primeira etapa serviu para estruturar a sede, comprar equipamento multimídia, ajeitar alguns instrumentos e, principalmente, contratar dois profissionais para me ajudar - assim fico com mais tempo para me dedicar à banda e a parte operacional". A segunda etapa iria consolidar a primeira, e a terceira parcela seria destinada ao evento em outubro - os Pontos de Cultura recebem R$ 180 mil divididos em três parcelas anuais de R$ 60 mil, e o repasse da verba depende da contrapartida estadual. "A FJA está solicitando nova prestação de contas com outro formato. O problema é que já entregamos tudo, e não informam como é este novo procedimento e se há algum erro", lamenta.

Como a paixão pela música move as pessoas em Cruzeta, os dois profissionais contratados continuam trabalhando de forma voluntária. "As bandas estão fazendo o que o Estado não faz", diz. "O que nos faz continuar é o senso de responsabilidade".

Criação da associação A Music

Responsável pela formação musical de mais de dois mil jovens ao longo desses 25 anos, a Banda de Cruzeta faz parte da Associação Musical e Cultural do RN-Amusic, que hoje reúne mais de 50% das 115 bandas filarmônicas em atividade no RN. "A Associação visa manter o trabalho das bandas de forma independente, evitando a partidarização das coisas. Também procura contribuir na execução e gestão de projetos, capacitação e qualificação", disse o maestro. Os músicos formados em Cruzeta estão espalhados pelo mundo: há ex-alunos de Bembem na Orquestra Sinfônica Jovem de SP, instrumentistas atuando na Europa, Estados Unidos e Caribe. "Outros são professores da Escola de Música da UFRN. Antes o sonho desses jovens era ir tocar em uma banda de forró, hoje é se formar em música",

BemBem Dantas assumiu a Banda de Cruzeta em 1986, e em 1988 conheceu a suíça Margaret Keller, que veio ao Brasil participar de projeto voluntário com crianças. "Ela viu nosso potencial e deixou 50 dólares. Fui à Natal trocar esse dinheiro e comprei palhetas novas e gastei todo o resto copiando repertório da banda da Polícia Militar para podermos tocar aqui em Cruzeta", lembra. "Depois, sem avisar, mandou mais 800 dólares. Quando Margaret voltou, um ano depois, viu que tínhamos conseguido multiplicar aquele dinheiro e já estávamos atendendo mais de 100 crianças na escola". Atualmente Keller envia 3 mil dólares a cada trimestre, que servem para manter a escola funcionando e dar suporte ao alunos: Esse dinheiro também financia bolsa transporte para 22 alunos que estão estudando música em Natal, oferece assistência médica e dental em emergências, ajuda no pagamento de inscrições para cursos e concursos.

Educação musical

A escola de música atende 150 alunos e uma série de grupos desdobrados a partir da Banda principal.: banda de flauta; de pife; de percussão; Quinteto de Metais Quimpóró; quarteto de clarinetas, quarteto de trombones e regional de choro. A Banda de Cruzeta já se apresentou no CE, PE, MG e BA, onde se apresentou em 2008 em um evento com a presença do ex-presidente Lula.

Questionado sobre a lei que torna obrigatório o ensino de música nas escolas a partir de 2012, Bembem Dantas acredita que "estão com a ideia equivocada de querer montar uma banda em cada escola. Não adianta pegar 500 crianças e formar uma banda de flauta. Pode-se até ensinar o básico de algum instrumento, de partitura, mas a educação musical deveria servir para educar o ouvido e o ouvinte. O aluno precisa sair da escola conhecendo a história da música, a diferença entre instrumentos, sabendo sobre os ritmos originais brasileiros e a origem dos estilos. O plano pedagógico tem que considerar esse viés, e quem quiser seguir carreira ótimo - foi dada essa opção", garante o maestro.

Para Dantas, as discussões sobre o assunto ficam restritas aos acadêmicos, "que na maioria das vezes desconhecem a realidade de pequenas cidades como Cruzeta. É preciso olhar para o aluno para saber qual a abordagem mais indicada", diz com propriedade. "O Brasil não é um país, é um um conservatório ao ar livre, e educação musical é uma coisa para a vida toda. Música é a identidade de um povo", finaliza.